sexta-feira, 2 de maio de 2008

Anômalo

É lógico que era feliz, mas naquele dia havia uma canseira inexpressiva em seu olhar. Era uma fadiga inerente aos sonhadores. Um esfalfamento de inúmeros pensamentos tão pesados, tão longos, tão compridos, tão tortos... Definitivamente, era exaustivo demais carregar em sua cabeça pequena tantos pensamentos, tantas idéias e sonhos. E por isso estava cansada. E por estar cansada parecia que o céu não era mais tão azulado, que os pássaros estavam desafinados, que as crianças tinham feições senis. Por estar cansada parecia que seu coração pesava demais dentro do seu peito. Parecia que esse seu pobre órgão estava grande. Grande e pesado demais para caber em si. E, com essa sensação de peso na alma e de canseira na cabeça, sentia algo. Algo que não sabia bem o que era. Mas sentia. E, por não saber definir, chamou-a de tristeza. Embora, em seu intimo, soubesse muito bem que não era a tristeza propriamente dita. Aquela dos desesperados, dos desolados, dos pobres de espíritos, dos coitados. Era um estar diferente. Não diferente como quando se está apaixonado, que tudo que se sente parece ser diferente. Mas diferente como indecifrável. Não sentia vontade de sorrir, então não sorria. Logo, diriam todos, que ela estava triste. Porém, embora não sorrisse, por não ter vontade de fazê-lo, também não chorava, exatamente pelo mesmo motivo. Dessa forma não era ela nem triste, nem feliz. Ainda que, infantilmente, achasse que aquilo, aquele “sei lá o quê” que a tomava fosse tristeza. Mas não era.
Talvez fosse mesmo o cansaço. Aquela exaustão de ficar tecendo inúmeros pensamentos e de mantê-los todos ali, presos e enjaulados em sua mente. Fora o trabalho que dava transportá-los diariamente. Eles vão se acumulando, começam únicos e ímpares, tornam-se múltiplos, imensos, espalham-se. Tomam conta de todo o espaço possível. E quando, simplesmente, o espaço lhes é insuficiente começam a tentar escapulir. E é nesse ponto em que mora o perigo. Imagina se um desses pensamentos foge, assim como quem não quer nada, em uma tarde distraída, e acaba indo parar na boca...! Que tragédia seria! Então se tem trabalho a enésima. Trabalho de pensá-los. De engaiolá-los. De transportá-los. De senti-los revoltados. E de mantê-los. Muito, muito trabalho...! E desse labor infindável surge, então, a fadiga, o cansaço, a exaustão. Mas essa não dá sinais de que irá surgir. Simplesmente aparece e se instala. No inicio não se toma àquilo como importante. Porém a exaustão permanece. E por permanecer parece multiplicar-se. E por multiplicar-se parece não ter mais fim...
Dessa exaustão infindável aparece, então, o supracitado sentimento indecifrável, inteligível e anônimo (porque não dizer até mesmo anômalo). Pra não ter que se criar mais um pensamento e acumulá-lo na cachola sem espaço, ela prefere simplesmente acreditar estar triste. Ainda que triste seja vago. Ainda que tristeza não seja, necessariamente, antônimo de felicidade. Ainda que haja a possibilidade de riso, caso surja vontade. Ainda que haja a possibilidade de choro, nas mesmas condições anteriores. Ainda que, lá no fundo do seu coração pesado de tantos pensamentos amargamente trancafiados, ela saiba que não está triste, de fato, nem ao menos feliz. Porém, agora, nesse ínfimo instante, ela não quer descobrir exatamente qual é a perfeita definição do que sente. Agora ela apenas quer relaxar enquanto espera sua taça sorvete hiper calórica. Agora.